domingo, 6 de dezembro de 2009

A VIDA EM JOGO

Cientistas e políticos - sobretudo os últimos - afirmam que, se até ao final do século, a temperatura média da Terra subir mais do que dois graus, será muito mais difícil ou mesmo incomportável lidar com as alterações climáticas. Por isso, há que fazer todos os esforços para não se ultrapassar este valor.

Mas que diferença fazem dois graus? Na quinta-feira passada, em Lisboa, estavam 13 graus de manhã e 15 à hora do almoço, e nada aconteceu. Na maior parte dos dias, a variação é muito maior, sem nenhuma consequência. Ao longo dos meses, passamos de temperaturas baixas no Inverno para mais de 30 graus no Verão e tudo o que fazemos é mudar de roupa ou regular a temperatura dentro de casa.

Porquê tanto barulho em torno de apenas dois graus? O principal argumento é o de que, numa escala de décadas ou mesmo séculos, dois graus farão uma grande diferença. As variações dia a dia, mês a mês, ano a ano, continuarão a existir, mas partirão de uma base diferente onde a temperatura média global seria de 15,5 graus. As temperaturas altas serão mais altas. As baixas serão menos baixas.

A alteração será perene, e não temporária. Provocará mudanças na paisagem. Derreterá glaciares e reduzirá as calotas polares. Tornará mais frequentes os extremos climáticos. Obrigará os seres vivos a adaptarem-se.

Por trás de qualquer imagem simplista, há sempre uma dose de incerteza. E este caso não foge à regra. Nem os dois graus são uma meta definitivamente segura, nem se sabe bem se é possível conter o aumento da temperatura àquele nível.

Origem política

A ideia dos dois graus surgiu há 13 anos, num contexto político. No dia 25 de Junho de 1996, os ministros do Ambiente da União Europeia reuniram-se no Luxemburgo e decidiram que seria aceitável viver num mundo com dois pontos acima no termómetro. "O Conselho acredita que a temperatura média global não deve exceder os dois graus além do nível pré-Revolução Industrial", concluíram os ministros.

A decisão baseou-se sobretudo nos trabalhos iniciais do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), criado pela Organização das Nações Unidas. No ano anterior, o IPCC divulgara a sua segunda avaliação sobre as alterações climáticas, concluindo que a temperatura média da Terra já tinha subido de 0,3 a 0,6 graus Celsius desde o fim do século XIX. E subiria mais um a 3,5 graus até 2100, segundo diferentes cenários. A projecção média era de dois graus.

Embora difíceis de quantificar, o relatório do IPCC trazia uma lista de possíveis impactos - na biodiversidade, nos ecossistemas, na saúde, na alimentação. Alguns efeitos seriam positivos, mas o lado negativo era mais assustador.

"A ideia dos dois graus nasceu dentro da UE, a partir da leitura que foi feita dos relatórios do IPCC", confirma o consultor Gonçalo Cavalheiro, da empresa Ecoprogresso e que durante anos integrou a delegação portuguesa nas negociações climáticas internacionais.

Fixar um limite era - e continua a ser - um imperativo. Desde 1992, a comunidade internacional procura uma resposta a uma questão levantada pela Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, assinada naquele ano. O objectivo da convenção é estabilizar a quantidade de gases com efeito de estufa na atmosfera "a um nível que evite uma interferência antropogénica perigosa sobre o sistema climático". Mas até hoje ninguém soube apontar com precisão científica a partir de onde é que a influência humana passa a ser "perigosa".

Ao sugerir os dois graus como meta, a União Europeia deu a sua resposta. E fez escola. Até meados de 2008, mais de uma centena de países tinha adoptado a ideia. Ainda na semana passada, os 22 líderes que participaram na XIX Cimeira Ibero-Americana, no Estoril, referiram o mesmo objectivo. O limite de dois graus pode vir, agora, a integrar o acordo global que se espera da cimeira climática de Copenhaga, que começa amanhã.

Subida do mar

Hoje, a ciência traça um quadro bem mais detalhado das possíveis alterações no planeta à medida que a temperatura global aumenta. Vários estudos fornecem pistas para se compreender o que pode acontecer, se o limite médio de dois graus for ultrapassado.

Um cenário tido como preocupante - embora num futuro longínquo - é o do degelo parcial da Gronelândia e da Antárctida, possível a partir de um aumento de 1,5-2,5 graus na temperatura global (que hoje está nos 14,3). Será um processo lento, mas que pode fazer o nível do mar subir quatro a seis metros, no espaço de séculos ou milénios. Com três graus a mais, a subida estimada é de 2,5 a 5,1 metros bem mais cedo, em 2300.

Muitos outros efeitos ocorrem em magnitude inquietante acima de um determinado nível de aquecimento. A camada de gelo do Árctico pode desaparecer completamente no Verão, se o termómetro mundial subir mais de três graus, segundo cenários do último relatório do IPCC.

Acima dos dois graus, a produção de alimentos pode sofrer um acentuado declínio, mesmo que nalgumas regiões possa haver um incremento. Haverá mais pessoas sujeitas à escassez de água e a cheias. A fome e determinadas doenças terão um peso maior.

Novamente, todos estes cenários estão envoltos em incertezas. Muito citado é o risco acrescido de extinção de 20 a 30 por cento das espécies sobre a Terra. É um número que resulta sobretudo de um trabalho científico em particular, que analisou apenas cerca de 1200 espécies terrestres. "Ainda não há nenhuma análise global", diz o biólogo Miguel Araújo, da Universidade de Évora e do Museu Nacional de Ciências Naturais de Madrid, e que participou na elaboração do último relatório do IPCC. "É um argumento que devia ser utilizado com mais cautela do que tem sido", completa Araújo, para quem o limite de dois graus "é uma meta política".

Efeitos complementares

O limite de que se fala agora também não é visto como completamente seguro. Ecossistemas como os recifes de corais, por exemplo, podem ser severamente afectados mesmo com aumentos da temperatura global inferiores a dois graus. O mesmo vale para o incremento na ocorrência de eventos extremos, como ondas de calor, fogos florestais e cheias.

Além disso, a manutenção sustentada do aquecimento a dois graus pode provocar alterações que alimentarão ainda mais o efeito de estufa, como a libertação de metano de solos permanentemente gelados ou a redução das superfícies geladas, que reflectem a radiação solar. "Dois graus já é perigoso", afirma Ricardo Trigo, climatologista da Universidade de Lisboa. "Pode ser razoável para 2100, mas não é razoável para umas centenas de anos", completa.

Os custos também são outro factor importante. Os prejuízos são crescentes com o aumento progressivo da temperatura e a factura pode ir de 5 a 25 por cento do produto interno bruto mundial, segundo estimativas citadas pela União Europeia. Manter o aumento da temperatura nos dois graus Celsius, por seu lado, custaria 2,5 por cento do PIB.

O que não se sabe ao certo é o que é preciso para conter, numa medida exacta, a subida do termómetro. Há um número corrente, que vem sendo sempre mencionado: a concentração de dióxido de carbono na atmosfera teria de estabilizar em 450 partes por milhão (ppm) - quando hoje é de 384 ppm. Mas isto não nos dá senão uma ténue segurança probabilística: com esse nível de CO2 na atmosfera, há 50 por cento de hipóteses de o aumento da temperatura ficar abaixo dos dois graus. É como atirar uma moeda ao ar e torcer para que caia do lado certo.

O climatologista norte-americano James Hansen, que lançou um alerta pioneiro sobre o aquecimento global em 1988, está convencido de que não é suficiente. O planeta está a reagir de forma diferente à prevista pelos modelos climáticos. O Árctico, por exemplo, está a encolher mais rapidamente. Hansen defende, por isso, que a concentração segura deveria ser de 350 ppm, e não de 450. Uma campanha internacional neste sentido foi lançada este ano (www.350.org).

Mesmo que se opte pelos 450 ppm, será preciso um esforço brutal para não ultrapassar a meta. As emissões globais de gases com efeito de estufa poderiam ainda subir até 2020, mas depois deveriam cair para a metade do que eram em 1990, até 2050.

"Não faz sentido"

Para João Corte-Real, climatologista da Universidade de Évora, é um erro insistir na tecla das emissões. Corte-Real não comunga da tese de que as alterações climáticas têm uma forte componente humana e diz que as variações na concentração de CO2 na atmosfera não têm uma relação linear com as variações na temperatura. "Pretender controlar valores da temperatura controlando emissões não é viável", diz. A meta dos dois graus, segundo Corte-Real, "não faz sentido".

Mesmo que faça, podemos já estar muito atrasados. O termómetro global já subiu 0,8 graus desde meados do século XIX - hoje está nos 14,3 graus. O oceano, que tem uma inércia térmica maior, ainda vai aquecer mais, mesmo que a concentração de CO2 se mantenha estável. A margem que sobra é muito pequena. "Estou convencido de que não será possível limitar o aumento da temperatura a dois graus", acrescenta o físico Filipe Duarte Santos, coordenador de alguns dos principais estudos sobre o impacto das alterações climáticas em Portugal.

O gigantesco esforço necessário para se atingir a meta é o que estará em discussão na cimeira de Copenhaga, a partir de amanhã. É certo que as emissões globais de carbono caíram três por cento este ano, fruto da recessão mundial. Mas, segundo Filipe Duarte Santos, sem um envolvimento sério dos Estados Unidos e da China, os maiores emissores mundiais de CO2, não haverá hipótese de se conseguir conter o aquecimento global sob o tecto que se deseja. "A menos que continue a crise económica", ironiza o investigador.

Sem comentários: